sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

LENDAS DE PORTUGAL - III - PORTO

Os tripeiros e Pedro Sem

Ramalho Ortigão, no tomo inicial de As Farpas, declara: No fundo das suas convicções políticas e sociais, o portuense é verdadeiramente patuleia... gloria-se de ser tripeiro e articula esta palavra rijamente. Então. os portuenses têm orgulho na alcunha de tripeiros? Ora porquê? Por duas razões, mediando entre elas nada menos que 31 anos. Parece misterioso, mas recuemos a 1384, quando Rui pereiras organiza no Porto uma armada de 17 naus e 17 galés e ruma a Lisboa, para acabar com o cerco dos castelhanos e acudir a uma população faminta. A armada levava não só marinheiros e soldados como mantimentos. Praticamente toda a carne que havia entre muralhas no Porto, que os da velha cidade entenderam contentar as suas mesas à conta das tripas, que cozinhavam com feijões. O resto das carnes apareceu só quando se estabilizou a vida nacional. Os portuenses ganharam o gosto às tripas e uma comida de emergência tomou-se um petisco e um prato de substância. Aliás, só os estômagos fracos e sensibilidades exageradas afastam o prato. E o tom pejorativo da alcunha apareceu já em fase de calmia histórica, digamos assim.
A segunda e decisiva vez já foi em 1415. Os calafates da beira-rio trabalhavam rijamente na aparelhagem de mais umas quantas naus e multiplicavam-se os boatos sobre o destino das mesmas. Que eram uns príncipes que iam casar a Nápoles, que era o rei João apontado a visitar a terra Santa, que a princesa assim, que não se sabia mais quê. Boataria.
À maneira, como convinha. Até que o jovem Infante D. Henrique manda chamar o seu fiel Mestre Simão, que dirigia os estaleiros. Pedindo-lhe o máximo sigilo, confiou o infante ao seu velho amigo que essas naus em construção se destinavam à conquista de Ceuta. Mestre Simão, que já participara na armada que libertara Lisboa, sabia que o que se pedia não era apenas o cumprimento de prazos na entrega das embarcações, era o próprio abastecimento. E de novo o Porto se comprometeu a voltar a comer tripas por obrigação. E o epíteto, muitas vezes incompreendido para os de fora e para alguns de dentro, tornou-se uma medalha de patriotismo.
Bem, mas uns escrevem com S outros com C, mas será com S. Pedro Sem e não Pedro Cem. O homem vivia naquela torre hoje adossada ao antigo paço episcopal. Era rica, usurário e tinha pena de não ser nobre. Mas um dia arranjou um expediente através de um nobre arruinado a quem saldaria a dívida se o outro lhe desse a filha em casamento. Deu, seja: vendeu-a assim. E em plena boda, num belo dia de sol, foi anunciado a chegada dos seus barcos vindos do oriente, carregados de riquezas. Pedro levou os convidados à varanda para verem chegar as suas naus à foz do Douro. E suspirou quem Deus o poderia empobrecer. Naquele instante produziu-se uma tempestade tamanha que estragou a festa. Os barcos, um a um, afundaram-se. E toda a gente fugiu de ao pé dele, assustadíssima.
Reconheceram-no, tempos depois, mendigando pelas ruas da antiga baixa portuense, estendendo a mão à caridade pública:
- Uma esmolinha para o Pedro Sem que já teve muito e agora nada tem! -

Sem comentários: