Em cada tarde que descia à praia, dispondo-se a embarcar para a faina, o pescador Valentim de Jesus erguia os olhos. Erguia os olhos ao seu céu mais azul, a varanda da casa do palácio de D. Manuel Vaz de Castro, buscando um vulto feminino. Tratava-se de Ester, a judia com quem o fidalgo casara e por quem o jovem estava apaixonado. Bastava-lhe vê-la, às vezes, raras. Sabia lá o que é que a dama pensava dele, mas uma tarde houve em que se apaixonara. E levava sempre consigo para o mar aquela lembrança de beleza.
Ora o pai de Valentim logo reparou que o filho fora apanhado nas redes do amor. Confessou-lhe o rapaz o que se passava. E o velho apenas disse: "Esquece-a! Olha que o fidalgo não é para brincadeiras!" Mas Valentim explicou que, apesar de todo o amor dele por Ester, ela nem sabia que ele existia...
"Isso não interessa! Repara é nas raparigas que estão de olho em ti e escolhe a que mais te agradar! Essas sim são para o teu dente!" Azedou-se a discussão, distanciaram-se pai e filho.
Ora uma bela tarde, estando Ester na varanda do seu palácio reparou que o pescador nesse dia ainda não passara e surpreendeu-se por pensar nisso. É que lhe doía mesmo aquela ausência. Nunca falara com ele e julgava nem sequer ter dado pela sua existência e, no entanto, sentia-lhe a falta. Sabia lá quem ele era, que feitio teria! Andava o marido na guerra e ela com aqueles pensamentos tão tolos! Então percebeu que aquela não era tarde, por tempestuosa, em que os pescadores fossem ao mar. Pelos sinais, via-se o dia seguinte seria soalheiro e calmo. E então... Então sorrir-lhe-ia quando ele passasse. Afinal, lembrava-se dos olhos dele, tão ternos, envolvendo-a, a ela que, por judia, era desmerecida pelos demais. E no dia seguinte, Ester e Valentim sorriam um ao outro. E assim todas as tardes seguintes. O velho receava que as vozes dessem disso notícia ao fidalgo.
Numa tarde aconteceu que Valentim saiu para o mar, levando o sorriso da Ester. Deu uma volta, mas amarrou de novo o barco e subiu a varanda. A judia não esperava tamanha audácia, assustando-se. Valentim disse-lhe que apenas a queria ver mais de perto e falar-lhe, tocar-lhe as mãos. Ela mandava-o embora, tanto mais que o marido regressara da guerra na véspera. O pescador declarou-se, mas ela tremia de medo. E tinha razão, porque apareceu D. Manuel que, vendo o que se passava, desembainhou a espada e matou o jovem, atirando o corpo ao mar. A mulher. mandou-a para o convento. E o velho pescador não mais perdoou a Ester a atracção exercida sobre o filho. Nem um milagre o faria acreditar noutra coisa, garantia ele.
E uma tarde, discutindo os pescadores na praia, num gesto violento, a imagem de Nossa Senhora do Cais foi cair à água, lançando-se o velho a buscá-la, a nado. Quando regressou com ela ao areal quase enlouquecia. O rosto da imagem era o da judia a quem ele ia insultar ao parlatório do convento.
Assim, quem em Setúbal hoje procura a imagem de Nossa Senhora do Cais, terá oportunidade de conhecer o rosto de Ester, a paixão de Valentim...