Na nova igreja matriz da antiga praça-forte de Almeida há uma interessante imagem de Nossa Senhora das Neves. Quem não quiser pensar demasiado no assunto logo julgará que estas neves se referem a um qualquer episódio ocorrido num dos raros nevões sobre aquele espaço geográfico. E quanto se engana quem por aí andar com suposições! Pois as raízes da lenda remontam a 26 de Agosto de 1810, quando os franceses arrasaram a vila num cerrado fogo de bombas e canhoneio. E as explosões destruíram não só o castelo, abrindo incomensuráveis brechas na muralha como derrubaram a sede da igreja almeidense. Telmo Cunha, no seu romance "As portas da Cruz", narra as infelizes circunstâncias do desastre militar e, no seu livro de narrativas Almeida, estrela de memórias, conta-nos a lenda de Nossa Senhora das Neves, trazendo-a à publicidade após tantos anos apenas nos cavacos de lareira.
Pois Telmo Cunha conta que logo depois da destruição da igreja e do castelo, os almeidenses quedaram-se como que órfãos desses dois decisivos sinais da sua identidade. Deambulando entre os escombros, sentiam abatido o orgulho que sempre haviam patenteado. As ruínas levavam-nos a querer proceder ao despertar da cidade traumatizada pela tragédia.Para eles, avultava a ideia de remover os escombros e dar uma nova ordem à cidade em cinzas.
"As ruínas magoavam intensamente os olhos e as almas dos que por perto passavam", contava Telmo Cunha. Equipas de voluntários prestavam-se a recompor a vila. E uns tempos mais tarde ergueu-se todo o povo que queria salvar a memória da sua terra. Limpar era a palavra de ordem. E para abrir espaço entre as escombreiras, atearam uma boa fogueira com os materiais revolvidos tidos como definitivamente inúteis, e a fogueira crescia, crescia...
E, de repente, aconteceu. Aconteceu o quê? Pois um fenómeno testemunhado pelas largas dezenas de voluntários para a limpeza da vila. Ou isso consta apenas assim na lenda. Pois não é que, e tomo a palavra de Telmo Cunha, "todos olharam estupefactos o céu plúmbeo e escuro, o sol primaveril havia desaparecido com o por encanto, dando lugar a um frio cortante e inesperado, que se entranhou fortemente nos corpos desabrigados. Atónitos e perdidos, todos viram cair uma neve alva e gélida, que fez baixar imediatamente as impetuosas chamas do intenso braseiro, acabando por o apagar e todo."
Acrescenta o escritor de Almeida: "Petrificados e sem fala, os almeidenses notaram como sobressaía no meio do amontado de destroços queimados e fumegantes, uma imagem de Nossa Senhoras, pretencente à antiga Igreja Matriz." A aparição provocou profundo silêncio, mas logo avançaram alguns a recolher a imagem chamuscada. Demorou a regressar à matriz reconstruída de Almeida, pois houve que reconstuí-la, mas ainda hoje lá a podemos ver como ilustração desta mesma lenda.